Por Tiago Penna
Tipicamente brasileiro é se deixar levar por influências e tendências hegemônicas sem maiores questionamentos críticos. Um dos últimos acontecimentos desta estirpe e que afetaram nossa mentalidade e modos de sentir e de pensar (e que posterior e inevitavelmente irá afetar nosso modo de existir), foi a moda do politicamente correto. Embora com um histórico nada virtuoso em termos políticos, nós – brasileiros – achamos “um barato” essa idéia de passar a agir certinho (pelo menos aparentemente), ou ao menos passar a falar de uma maneira que soe como se acreditássemos em um critério de verdade, que fosse realmente justo e humanitário. Assim, ao adotarmos o vocabulário politicamente correto, fomos capazes de produzir uma verdadeira assepsia conceitual que impede que a classe média – que no nosso país já pode ser considerada como abastada –, não se contamine com a miséria circundante, que de tão evidente e brutalmente exposta em nosso país, nos ameaça a cada instante de nossa vida (ou sobrevida). Além disso, podemos crer (inconscientemente), que nos comportando desta forma, poderemos expurgar nossa culpa latente (social, política e histórica), por tal quadro de miséria e usurpação da dignidade e da cidadania do povo brasileiro. Mesmo que nós apregoemos tais conceitos – que existem apenas em discursos teóricos persuasivos – e que, para isso, usemos falsos raciocínios como se fossem verdadeiros, e possamos fingir termos consciência política e histórica, enquanto na realidade nos afogamos em um mar de ignorância racionalista, que descreve a realidade de tal modo que esconde por debaixo do tapete as reais intenções políticas e morais de nosso povo, camuflando o que parece desagradável nesta mesma realidade conjuntural (e que passa a ser estrutural, devido a esse mesmo gênero de modos de pensar), como a pequena ponta um iceberg, com sua imensa massa de gelo submersa.
Assim, formulamos máximas que evitam que certas ausências significativas em nossos semelhantes nos envolvam emocionalmente – ao passo que chamar todo e qualquer ser humano de semelhante já passa a soar cafona e piegas. Por isso, pregamos: não diga favela – que é um termo duro demais para o nosso conforto –, diga “comunidade”. Não diga que os miseráveis são marginais (pode soar pejorativo), então diga que eles são apenas um “grupo de risco”. Jamais ouse dizer o termo crianças de rua, isso pode baixar sua já afetada auto-estima (se ainda houver alguma), diga “crianças de alta complexidade”. Desse modo, como é evidente, os significantes – as pessoas aos quais os termos se referem – sequer entenderão que estamos a falar a seu respeito. Afinal, em um país de 30 milhões de analfabetos (ou cerca de 15% da população), não é difícil deduzir que a escolaridade da grande maioria da população não é lá essas coisas; mesmo os possuidores de diplomas de nível dito "superior" talvez não possuam o mínimo decente de consciência política e existencial; enquanto em relação ao “povo” – que encarna uma parcela significativa da população quantitativamente, embora não qualitativamente - possamos ao menos lembrar que também são nossos co-cidadãos, e que, se é verdade que o homem é um “animal político”, cada um de nós também é responsável por todo e qualquer tipo de exclusão social. Além disso, ao usarmos este tipo de vocabulário, nós conseguimos manter nosso intelecto aparente e superficialmente livre de maiores conexões (psicológicas e ontológicas) com tamanha miserabilidade (social, econômica, espiritual, psíquica).
Deste modo, auxiliados pelas telenovelas brasileiras e pelo cinema holywoodiano, podemos sonhar que estamos no reino da fantasia, onde todos somos livres e temos direitos iguais e perenes, e que não há desigualdade ou injustiça social em nossa pátria amada: Brasil. Mas afinal, por que ainda despender dinheiro público para o cinema independente, em especial um curta-metragem autoral sobre as crianças de rua? Por que se falar de um tema dito tão banal e corriqueiro? Afinal, em todas as grandes cidades brasileiras, em seu dia-a-dia, todos que transitam pelas ruas inevitavelmente irão cruzar e se deparar com crianças abandonadas nos semáforos, cheirando cola, mendigando, fumando crack, enlouquecendo, se subnutrindo, ou fazendo truques de malabarismo em troca de uma mísera moeda, que ou poderia saciar parcialmente sua eterna “
fome de tudo”, ou poderá realimentar sua ganância por drogas de baixo escalão, ou apenas amenizar sua mania, já inculcada em sua personalidade vazia, em mendigar sempre e todos os dias.Podemos atestar que este quadro leva a população já ignorante e carente à esquizofrenia coletiva; enquanto nós – membros abastados da classe média – continuamos com nossa paranóia diante da possibilidade de agressão e violência tão ingenuamente (in)esperada por parte dos menos favorecidos, além da histeria essencial desta classe social em querer sempre mais e mais, para evitar a decadência de nível sócio-econômico, e termos que passar a sentir na pele por isso que tanto consciente quanto inconscientemente fingimos ignorar: a miséria em absolutamente todos os âmbitos humanos.
E continuamos a alimentar este sonho hegemônico e tradicionalmente brasileiro, desde as suas origens, de ficarmos ricos a qualquer preço, nem que para isso tenhamos que passar por cima dos outros e pisar em suas cabeças, porque afinal, como diz o refrão: “o mundo é dos espertos”, além de que desde nosso nascimento que somos estuprados, e já nos engravidaram durante tantos séculos com o engodo de que “ser feliz é ser rico, o máximo possível” (nem que para isso tenhamos que viver a vida inteira em função do dinheiro, em vez de vivermos a vida propriamente dita, ignorando de maneira grosseira que atualmente vivemos em função da mera sobrevivência, mesmo que elitista), e que sem dúvida tem implicações em todas as esferas da vivência humana: psicológicas, sociais, políticas, éticas, culturais, espirituais, e infelizmente também artísticas, inclusive; esquecendo-nos da já arcaica sabedoria ocidental que pregava a humildade, a compaixão, e a igualdade plena de todos os seres humanos, e que propunha como forma de felicidade nada mais que a serenidade de consciência. Ou como dito por um teórico da história, talvez pudéssemos atingir nossa dignidade humana plena se simplesmente nos empenhássemos por satisfazer a fome “tanto do corpo, quanto da fantasia” de toda a humanidade.