domingo, 24 de março de 2013

O Que Temos, Lembro: Resenha Crítica do curta-metragem O Que Lembro, Tenho, de Rafhael Barbosa.

Permitam-me escrever em primeira pessoa.
Devo concordar desde já com a crítica, de que a equipe de Rafhael Barbosa filma em HD como em 35mm; que sirva de lição para os demais realizadores, ao menos desta possibilidade. O filme como um todo é muito bem realizado, inclusive o som, que chama atenção tecnicamente, sabendo-se que estamos em uma estado periférico, como o de Alagoas, no qual os recursos e formação tendem a ser mais precários do que em grandes centros, o que demonstra que com bastante boa vontade, e uma boa dose de experiência, podemos realizar boas obras cinematográficas no que se refere à técnica, bem como à estética, o que tentaremos defender em seguida.
O contexto de nosso estado - em termos de finaciamento público para o desenvolvimento de bens imateriais, como é o caso de um filme - reflete a conjuntura subdesenvolvida social (e por isso cultural) e econômica, na qual o disparate social e a concentração de renda se mostram ainda mais evidentes e acentuados do que em outras regiões ou estados brasileiros. Assim, tratar a cultura de modo geral como eternamente amadora, e com a disposição de recursos beirando a caridade, demonstram uma mentalidade ainda retrógrada por parte das grandes empresas e governantes instalados em Alagoas. A proposta, por mais exaustiva que seja, é o da luta coletiva e cultural, a partir da realização de produtos culturais e obras artísticas com apuro técnico próximo da perfeição, e a qualidade estética requintada, como é o caso do filme O Que Lembro, Tenho.
A narrativa do filme, mais do que dramática, poderia ser classificada como lírica, sem maiores controvérsias, pois o "drama" que move o filme e impulsiona a narrativa não é de modo algum concentrado nas ações das personagens, mas sim pela subjetividade de Maria, a idosa com poucos referenciais "realistas", com todo peso pejorativo que esta palavra poderia se referir. Pois é evidente que há uma humanidade latente entre o quadro de esquecimento e desorientação de Maria, e seu acolhimento por parte de sua filha, Joana, que resplandece um sofrimento contido. Aliás, a atuação das duas atrizes, Anita das Neves (Maria), e Ivana Iza (Joana), são sublimes, do ponto de vista da atuação que mais do que ser - mais uma vez - "realista", são tocadas e motivadas pela atmosfera psicológica e emocional das personagens, o que de fato ajuda a construir personagens "verossímeis e necessários", como clama a dramaturgia clássica, desde Aristóteles.
Ao imergimos na subjetividade de Maria, depois do contraste das paisagens naturais (e bucólicas), das primeiras cenas, compartilhamos de sua claustrofobia urbana, e sua perda de um lastro psicológico e existencial (pós-moderno?), acarretado por esta fase de sua vida, que é a velhice. A performance de Anita das Neves - que diga-se de passagem, não é atriz profissional - é sublime, sensível, sutil. Mais do que texto verbal (improvisado pela atriz), mais do que meras expressões faciais ou corporais (caras e bocas), conseguimos enxergar sua alma (que ela nos empresta tão docemente). O tom de voz, as situações em que mãe e filha se colocam e partilham, nos dão a atmosfera tonal (eisesteiniana) da narrativa, cujos conflitos essenciais estão centrados na percepção e na subjetividade das personagens, e nos levam a beirar a vivência de uma situação surrealista (no bom sentido), sutil e sensível, mais pela percepção e vivência onírica das personagens, do que por possíveis delírios ou alucinações que um leitor menos avisado poderia esperar.
Neste sentido, o autor, o cineasta Rafhael Barbosa, roteirista primeiro, e diretor principal da obra, traz à tona sua habilidade - talvez ainda inconsciente, latente - de elaborar dramas alegóricos e contemplativos. Alegóricos porque a linha "evolutiva" da ação não é completinha, linear, nem auto-explicativa, mas se "explica" muito com o pouco que é mostrado, deixando lacunas que o espectador irá preencher através de suas vivências e experiências pessoais e familiares (isto talvez explique o esplendor da atuação de Anita das Neves), e a sensibilidade do roteiro e do filme como um todo, para nós, habitantes do nordeste, mesmo que urbano, brasileiros, que costumamos cuidar de nossos parentes mais idosos em casa, e não em um asilo, como é habitual em países "desenvolvidos" (leia-se capitalistas), e com forte influência protestante. Contemplativo, pois com silêncios, ruídos, músicas, e diálogos tão bem situados, nos traz uma leveza e profundidade emocional simutâneas, como grandes obras universais nos trazem (mais do que uma explosão supeficial de emoções menos profundas). Esta estética nos faz refletir sobre nossos valores, hábitos, sentimentos, especialmente no que se refere à família, e à vida humana do ponto de vista da natureza, mais do que pelo âmbito da cultura, o que filosoficamente se evidencia que tal "cultura" é uma contingência histórica, como a que Maria e Joana têm de enfrentar, sem que se perca o sentimento maior que as une até o fim: o Amor.

por Tiago Penna (Professor de Filosofia, e Cineasta nas horas vagas).